Filmes independentes na indústria cinematográfica

Montagem de Evelyn, de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, ao lado de Doutor Estranho, utilizada para mostrar o contraste entre blockbusters e filmes independentes.

A temporada de prêmios chegou ao fim com destaque principalmente ao filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, que se tornou o longa mais premiado da história com 165 prêmios – 64 a mais que o ‘Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei’, que detinha a liderança do ranking de longas com maior número de premiações. O filme foi produzido pelos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert (conhecidos como Daniels) em parceria com a A24, produtora de filmes independentes. A empresa foi a líder de premiações no Oscar, com 9 prêmios, desbancando grandes estúdios como Disney, Paramount e Warner. 

Como a produtora, fundada em 2012, conseguiu se consolidar tão rápido no mundo dos filmes? Os filmes independentes caíram nas graças do público e da academia? O que faz um filme com o orçamento tão baixo desbancar tais produções milionárias?

O que são filmes independentes?

De acordo com o livro de regras do ‘Film Independent Spirit Awards’, que é a premiação mais importante para as produções da categoria, um filme é considerado independente quando tem um orçamento de menos de 30 milhões de dólares.

Elenco de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo recebe prêmio do Film Independent Awards, principal premiação para filmes independentes
Elenco de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo recebe prêmio do Film Independent Spirit Awards (Reprodução: Getty Images)

A A24

A produtora, fundada em 20 de agosto de 2012, começou como uma distribuidora de filmes, sendo ‘As Loucuras de Charlie’, de Roman Coppola, o primeiro longa distribuído pelo selo. Nos seus primeiro anos, a A24 já contava com diversos filmes dirigidos por aclamados diretores (como Sofia Coppola em ‘Bling Ring: O Gangue de Hollywood” e Denis Villeneuve em ‘O Homem Duplicado’) e estrelados por grandes atores de Hollywood (como Scarlett Johansson em ‘Debaixo da Pele’ e Robert Pattinson em ‘The Rover – A Caçada’), que atraíram o interesse de grandes serviços de streaming em acordos com a A24 para a distribuição dos promissores longas.

Não demorou muito para que a produtora começasse a figurar nas grandes premiações: em 2016, três filmes distribuídos pela A24 levaram categorias do Oscar: Brie Larson ganhou como Melhor Atriz, por ‘O quarto de Jack’, ‘Amy’ ganhou como Melhor Documentário e ‘Ex Machina’ levou a estatueta de Melhores Efeitos Visuais. Logo no ano seguinte, a produtora levou a maior categoria da noite, de Melhor Filme, com ‘Moonlight: Sob a Luz do Luar’. O filme ainda rendeu o prêmio de Melhor Roteiro Adaptado para Barry Jenkins e Tarell Alvin McCraney e de Melhor Ator Coadjuvante para Mahershala Ali. 

Produziu e distribuiu muitos filmes aclamados pela crítica, como ‘Lady Bird’, da diretora Greta Gerwig, ‘O Farol’, com Robert Pattinson e Willem Dafoe, e ‘Jóias Brutas’, estrelado por Adam Sandler. Aos poucos, a A24 se firmou também como uma grande produtora de filmes de terror, com filmes como ‘Hereditário’ e ‘Midsommar’, do diretor Ari Aster, ‘X – A Marca da Morte’, ‘Pearl’ e o futuro longa ‘MaXXXine’, trilogia de Ti West, entre outros. 

Na 95ª edição do Oscar, a produtora foi quem teve mais indicações, com 18, por filmes como ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’, ‘A Baleia’, ‘Aftersun’, ‘Close’, ‘Causeway’ e ‘Marcel The Shell With Shoes On’. Levou 9 prêmios, incluindo os 4 principais (Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Direção) – foi a primeira produtora a conseguir o feito.

Ke Huy Quan, Michelle Yeoh, Brendan Fraser e Jamie Lee Curtis com suas estatuetas do Oscar. Todos atuaram em filmes independentes.
(Reprodução: Getty Images)

Por que os filmes independentes crescem tanto? 

A lista de 10 maiores bilheterias do cinema de 2022 é formada inteiramente por filmes blockbusters, sendo que aqueles que não são do Universo Cinematográfico Marvel (como ‘Thor: Amor e Trovão’, em oitavo lugar e ‘Pantera Negra: Wakanda Forever’, em sexto)  são sequências de grandes franquias já estabelecidas e prestigiadas no cinema (como ‘Top Gun: Maverick’ em segundo e ‘Avatar: O Caminho da Água’, liderando a lista)

Esses filmes compartilham algumas características entre si: orçamentos altos, grande uso de CGI, longo período de exibição nos cinemas, um público já cativado e, o mais importante, um retorno significativo em relação ao investimento. A combinação dessas características criou um cenário confortável para os grandes estúdios, onde independente da história ou da qualidade do filme, ele renderá dinheiro.

A situação pode ser vantajosa para os realizadores, mas os consumidores já estão mostrando os sinais de cansaço. Os filmes do universo Marvel, por exemplo, começaram a ter seus roteiros chamados de fracos, a grande necessidade de fazer com que tudo seja interligado entediante e os efeitos visuais tidos como cada vez mais “toscos”. As sequências não escaparam das críticas, que apontam que, na maioria das vezes, os filmes têm preferido não inovar, trazendo os mesmos pontos que garantiram o sucesso da franquia, como foi o caso do terceiro filme de Jurassic World, lançado em 2022 e que também está entre as maiores bilheterias do ano. 

Avatar 2: o caminho da água foi a maior bilheteria do cinema em 2022.
Avatar 2 foi a maior bilheteria de 2022 (Imagem: Reprodução/20th Century Studios)

Somando filmes repetitivos a um público começando a perceber suas fragilidades, a reação natural dos consumidores dessas obras é de procurar por algo novo, um refresco da mesma fórmula desgastada, e é aí que entram os filmes independentes. 

Os filmes de estúdios menores, com menos investimento, são quase como experimentos. Eles se permitem inovar em formatos e histórias por não estarem atrelados a uma necessidade de trazer um enorme retorno financeiro aos seus realizadores, como é o caso dos blockbusters

Outro fator importante na originalidade é a liberdade que seus criadores recebem. A A24 ficou muito conhecida por sua grande variedade de histórias e temáticas, isso porque deixa seus diretores e roteiristas livres para conduzirem seus filmes da maneira que julgarem melhor, diferente daqueles com alto investimento, onde os criadores são muito limitados as vontades e planejamentos de quem está acima deles. 

Ano passado, o público pôde tirar prova da influência desses fatores no produto final. No início do ano, a Marvel lançou ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’, e poucos meses depois, a A24 lançou ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’. Em um, temos Sam Raimi, um diretor renomado e conhecido por sua maneira única de conduzir uma narrativa, no outro, a dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert, praticamente estreantes na função. No primeiro, o investimento foi de U$200 milhões, enquanto o segundo recebeu U$25 milhões, um valor muito abaixo do comum no cinema. E o resultado? Tudo em Todo Lugar se tornou o filme mais premiado da história, enquanto Doutor Estranho recebeu péssimas críticas por parte dos especialistas e do público, além de ficar marcado como uma das maiores decepções da Marvel. 

O principal comentário sobre ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ quando o filme estreou foi que ele trazia o real multiverso da loucura que Doutor Estranho prometia, e partindo desse ponto, é possível enxergar as principais diferenças que levaram um filme a ser um sucesso e outro um fracasso. O filme do herói, além de trazer um roteiro batido, cenas vazias postas com o único propósito de agradar os fãs da Marvel e um visual questionável, não dá espaço para Sam Raimi trabalhar. 

Sam Raimi, diretor de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura
Sam Raimi, diretor de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Montagem: Jamesons)

Doutor Estranho é um produto, feito exclusivamente para cumprir um propósito transitório no universo cinematográfico da Marvel. Ele depende de ao menos três filmes e uma série para funcionar, e tudo apresentado ao seu decorrer propositalmente não é resolvido, já que será trabalhado em futuros filmes. Ou seja, é fácil concluir que o diretor recebeu uma história praticamente pronta e inalterável, podendo se contentar apenas em imprimir sua marca no visual. 

Enquanto isso, os Daniels puderam explorar ao máximo sua criatividade em Tudo em Todo Lugar. Sem nenhuma amarra ou limitação do estúdio – além do baixo orçamento – era possível criar, e foi isso que fizeram. Os diretores exploraram o multiverso de uma maneira nunca vista antes, se permitindo viajar entre as mais absurdas dimensões com  regras próprias, tudo isso embalado por um drama familiar, que mesmo que pareça simples a primeira vista – um conflito entre mãe e filha – ganha uma nova roupagem da maneira com que é trabalhado. O filme é inovador, marcante e basta por si próprio, o que somado a atuações de alto nível e um visual de tirar o fôlego, traz um respiro aos fãs de cinema. 

O futuro do cinema independente

Mesmo com a grande discrepância de qualidade, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura entrou em quarto lugar na lista de maiores bilheterias de 2022, faturando mais de US $950 milhões, enquanto Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo sequer aparece na lista.

O cinema cada vez mais é uma opção inviável. Seja pelo seu valor ou pela praticidade que os streamings oferecem hoje em dia, o fato é que menos pessoas estão indo ao cinema, e quando vão, precisa valer a pena. Assim, é mais vantajoso assistir a um  filme já famoso, seja ele uma continuação ou parte de um grande universo, do que se arriscar em uma história nova. 

Além disso, há o fator de tempo de exibição. Os blockbusters ficam por semanas nas salas de cinema, dominando a maioria delas, restando uma quantidade reduzida aos filmes independentes, que também ganham uma janela de exibição menor. Por exemplo, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, apesar do sucesso de crítica, ficou pouco tempo em exibição, voltando ao cinema com mais salas e tempo apenas após as indicações ao Oscar e aos diversos prêmios que já havia sido indicado e ganhado.  

Mesmo que venha ganhando o apreço do público e da academia, principalmente por estar cada vez mais presente nas premiações, os filmes independentes ainda precisam lutar muito para conquistar o seu espaço em um mercado já tão consolidado. O futuro é incerto, mas muito promissor. 

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Texto por Julia Pujar e Marcus Francisco

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